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O crime de aborto e o sigilo médico

O crime de aborto e o sigilo médico

A questão do sigilo médico versus o cumprimento do Código Penal brasileiro é complexa, e se tratando da prática de aborto e suas complicações, exige uma análise cuidadosa. 

Neste artigo trazemos o caso que levou o STJ a se pronunciar e a estabelecer uma regra geral. Confira. 

Os princípios éticos da prática médica 

Primeiramente, é importante ressaltar que existem princípios éticos que regem a prática médica, como a confidencialidade e o sigilo profissional, fundamentais para a relação de confiança entre médico e paciente.

O Código de Ética Médica, aprovado por meio da Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 2.217, de 27 de setembro de 2018, estabelece, em seu artigo 73, que: 

“É vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. E que na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que exponha o paciente a processo penal”.

No caso do aborto, o médico se encontra diante de um dilema ético-jurídico. Pois, sendo a prática do aborto criminalizada no Brasil (exceto em situações específicas previstas em lei, como em casos de estupro, risco de vida para a mãe ou anencefalia fetal), o médico pode se deparar com a obrigação legal de reportar o ocorrido às autoridades competentes, conforme estabelecido pelo Código Penal.

Em contrapartida, o profissional da saúde que atende uma paciente com complicações advindas de um aborto ilegal, tem o dever de respeitar o sigilo médico e a privacidade do paciente, conforme estabelecido pelos princípios éticos. 

Nesse contexto, é fundamental que o médico esteja ciente das leis aplicáveis e das possíveis consequências legais de suas ações, caso ele venha a se pronunciar a respeito do ocorrido, quebrando o sigilo médico/paciente.

A saúde e vida das mulheres em primeiro lugar

Em um artigo publicado em junho de 2023, intitulado “A vida da mulher e o sigilo médico“, O autor, Alberto Zacharias Toron, ressalta que a vida da mulher deve ser priorizada em casos de aborto e que a quebra do sigilo médico deve ser proibida. 

Seu posicionamento parte de um caso levado ao STJ no qual o médico colocou como condição a lavratura do boletim de ocorrência para atender a mulher com complicações decorrentes do aborto, que, intimidada, consentiu com medo de sangrar até a morte. 

Felizmente, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, relator do caso,  concedeu o Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública de São Paulo e trancou a ação citando que essa situação “apenas reforça a ilicitude da prova” — (HC nº 820.577-SP, DJe 29/6/2023):

“Permitir que profissionais da saúde violem o dever de sigilo profissional em casos de supostos crimes de aborto geraria o indesejado efeito de inibir a procura por socorro por mulheres em risco de morte”. “Em outras palavras, estas mulheres, amedrontadas com uma possível persecução penal, deixariam de procurar tratamento médico, o que aumentaria muito a possibilidade de agravamento dos seus quadros de saúde”. 

Desembargador Amable Lopez Soto, TJ-SP.

O fato não é isolado. Embora com contornos ligeiramente diferentes, em março deste ano a 6ª Turma do STJ concedeu Habeas Corpus para trancar uma ação penal em favor de uma mulher que, após ter realizado manobras abortivas em sua casa, teve que se internada em hospital na cidade de Lafaiete (MG). Neste caso, o médico não só noticiou o fato à autoridade como também figurava como testemunha na ação penal contra a mulher.

Para elucidar ainda mais o tema, cito aqui uma pesquisa no portal O Globo intitulada “Quem são as mulheres que respondem na Justiça pelo crime de aborto”, trazendo uma visão mais prática sobre os processos criminais relacionados ao aborto no Brasil. 

O resultado da pesquisa destaca que a maioria das mulheres envolvidas nesses casos são de baixa renda, com poucos recursos e acesso limitado aos serviços de saúde e a uma defesa jurídica adequada. 

Portanto, o artigo enfatiza que a criminalização do aborto prejudica principalmente as mulheres pretas e mais vulneráveis socialmente no país, que muitas vezes são obrigadas a recorrer a métodos improvisados, inseguros e ilegais. 

Tais mulheres buscam por atendimento médico quando já não há outra opção, os profissionais, por sua vez, devem ampará-las e não tratá-las simplesmente como criminosas, tornando o momento ainda mais doloroso. 

Posicionamento jurídico

Como advogados e defensores públicos, devemos reconhecer as complexidades e desafios enfrentados pelas mulheres envolvidas em casos de aborto. Devemos olhar para os direitos fundamentais das mulheres, incluindo o direito à saúde, à privacidade e à dignidade, analisando cuidadosamente as implicações sociais e as consequências legais para as mulheres envolvidas em processos criminais por aborto.

É fundamental buscar soluções jurídicas que considerem os princípios éticos, legais e sociais desses casos, utilizando uma abordagem mais humanitária e baseada em evidências em relação ao aborto.

Ao mesmo tempo, é imprescindível destacar a importância do sigilo médico e a necessidade de políticas públicas que promovam o acesso a serviços de saúde reprodutiva adequados e de qualidade para que as mulheres não precisem escolher entre um processo penal ou um atendimento médico humanizado.

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